sábado, 30 de maio de 2009


O poeta Ferreira Gullar, pai de dois esquizofrênicos, levanta uma das maiores controvérsias da psiquiatria: o que fazer com doentes mentais em estado grave?

CRISTIANE SEGATTO, IVAN MARTINS, ANDRES VERA, MARCELA BUSCATO E MARIANA SANCHES


REVSTA ÉPOCA 30/05/2009 (link no fim)

INTERNAÇÃO

Ele entrava em surto
E o pai o levava de
carro para
a clínica
ali no Humaitá numa
tarde atravessada
de brisas e falou
(depois de meses
trancado no
fundo escuro de
sua alma)
pai,
o vento no rosto
é sonho, sabia?

Quando o escritor Ferreira Gullar publicou em 1999 o poema “Internação” (acima), já era um veterano na convivência com doentes mentais. Quem fez a observação sobre o vento foi Paulo, seu filho mais velho, que hoje tem 50 anos. Ele sofre de esquizofrenia, doença caracterizada, entre outras coisas, por dificuldade em distinguir o real do imaginado. Desde os anos 70, Gullar tenta administrar a moléstia. Fazia o mesmo com Marcos, o filho dois anos mais jovem, que também tinha esquizofrenia e morreu de cirrose hepática em 1992. Remédios modernos permitem que pessoas como Paulo passem longos períodos em estado praticamente normal. Sem alucinações, sem agitação, sem agressividade. Mas o tratamento só funciona se o doente tomar os medicamentos antipsicóticos todos os dias e na dose certa. Isso nem sempre acontece. O resultado são os surtos, quando o paciente se torna quase incontrolável.
Pode cometer suicídio ou agredir quem está por perto. Nesses momentos, esses doentes costumam precisar de internação. “Dói ter de internar um filho”, diz Gullar, hoje com 78 anos. “Às vezes, não há outro jeito.”
No Brasil, estima-se que haja 17 milhões de pessoas com algum transtorno mental grave – como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo. Em algum momento, eles podem precisar de um hospital psiquiátrico. Encontrar uma vaga, porém, tornou-se uma tarefa difícil.
Nos últimos 20 anos, quase 70% dos leitos psiquiátricos do país foram fechados. Sem conseguir quem os ajude a cuidar dos doentes, pais e irmãos afirmam ter várias dimensões de sua vida pessoal comprometidas, dos compromissos de trabalho às amizades. É o que revela uma pesquisa feita em 2006 em Minas Gerais com 150 famílias com pessoas atendidas nos Centros de Referência em Saúde Mental. Em muitos casos, os doentes em surto fogem sem deixar rastro. Podem acabar embaixo dos viadutos. O aumento da população de rua nas grandes cidades não é fruto exclusivo da desigualdade social. Uma pesquisa feita em 1999 com moradores de rua em Juiz de Fora conclui que 10% deles eram psicóticos sem assistência.
“As famílias, principalmente as que não têm recursos, não têm mais onde pôr seus filhos”, diz Gullar. “Eles viram mendigos loucos, mendigos delirantes que podem agredir alguém. O Ministério da Saúde tem de olhar para isso.” Gullar decidiu expor publicamente um problema que não é só seu. Nas últimas semanas, escreveu três artigos sobre o assunto em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo. “Não pretendo liderar movimento algum. Sou um cidadão que tem uma tribuna e pode falar sobre o que está errado.”
Ele afirmou, no primeiro texto, que a campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia. Foi o suficiente para fazer eclodir uma controvérsia latente. Nos dias seguintes, dezenas de leitores enviaram cartas ao jornal. Representavam dois grupos. O primeiro, em apoio a Gullar, aponta as razões fisiológicas da doença mental e considera que a internação é um instrumento necessário nos momentos de surto.
O segundo, contra ele, afirma que os doentes devem ser atendidos em Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Nesses locais, o paciente recebe medicação e acompanhamento semanal. A ideia é atendê-lo sem retirá-lo do convívio da família e da comunidade. Para esse grupo, mesmo nos momentos de crise, o doente deve ser atendido nos Caps. Ele passaria alguns dias internado na própria instituição (ou em hospitais comuns, com alas psiquiátricas) e depois voltaria para casa. “O hospital é um lugar de isolamento, funciona como uma prisão. As pessoas vão e não voltam”, diz Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia. “Algumas famílias querem que a pessoa fique internada. É a ideia da instituição como depósito.”
Gullar se ofende com comentários como esse, que ouve desde o final dos anos 80, quando a reforma psiquiátrica que levou à situação atual começou a ser discutida no Brasil. “Essas pessoas não sabem o que é conviver com esquizofrênicos, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Elas têm a audácia de fingir que amam mais a meus filhos do que eu.”


“Ninguém aguenta uma pessoa delirante dentro de casa”

Um dos maiores críticos da falta de vagas para internação psiquiátrica, o poeta Ferreira Gullar conta a ÉPOCA a experiência de ter convivido com dois filhos esquizofrênicos - o que ainda está vivo mora hoje num sítio em Pernambuco.

Cristiane Segatto

SEM OPÇÕES

Ferreira Gullar diz que as famílias sem recursos não têm onde pôr filhos com doenças mentaisO poeta Ferreira Gullar, 78 anos, teve dois filhos com esquizofrenia. Paulo, 50 anos, vive num sítio em Pernambuco há cinco. Marcos, que tinha um quadro mais leve da doença, morreu em 1992, de cirrose hepática. Recentemente, Gullar escreveu três artigos no jornal Folha de S. Paulo sobre a falta de vagas para internação psiquiátrica. A reação dos leitores chamou atenção para uma das maiores controvérsias da psiquiatria: o que fazer com doentes mentais em estado grave? Gullar concedeu a seguinte entrevista a ÉPOCA em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro (confira ao final desta página um vídeo com trechos da conversa).

ÉPOCA - A lei federal 10.216, aprovada em 2001, não proíbe a internação de pacientes em hospitais psiquiátricos, mas estimulou a redução de leitos. Por que decidiu falar sobre essa lei agora?
Ferreira Gullar - Antes da aprovação da lei, soube do que consistia o primeiro projeto. Para internar uma pessoa, a família precisaria pedir autorização de um juiz. Felizmente isso foi retirado do texto final. Imagine o que é ter em casa um garoto em estado delirante - às vezes falando sem parar da noite até o dia seguinte. Os pais tentam dar remédio, tentam conversar e nada funciona. Nessa situação, o único recurso é internar. Você sente que a pessoa está saindo do controle e pode fazer uma loucura qualquer. Imagine ter de aguardar autorização de um juiz para internar um paciente numa situação de emergência. Que juiz? Aquele que nunca encontramos na justiça eficiente que temos? Imagine o desastre que isso seria.


ÉPOCA - Mas por que decidiu escrever neste momento?

Gullar - Li notícias recentes sobre o aumento de doentes mentais na população de rua. Eu já previa que isso ia acontecer diante da restrição do número de hospitais e do período de internação. Como é possível estabelecer um período de internação, determinar que um paciente psiquiátrico esteja curado dentro de determinado tempo? Quem não tem dinheiro para colocar o filho numa clínica particular fica com ele em casa até quando suportar. Muitas vezes o doente foge. Quantas vezes isso aconteceu comigo... Ele foge, vai para rua sem rumo. Ninguém sabe para onde vai.


ÉPOCA - O doente precisa ficar vigiado dentro de casa?

Gullar - Ninguém aguenta uma pessoa em estado de delírio dentro de casa. Só se ninguém trabalhar, todo mundo ficar em volta do doente. E se for uma pessoa agressiva? Tem que internar. Nenhum pai e nenhuma mãe internam seus filhos contentes da vida, achando que se livraram. Não estou dizendo que a lei foi feita para perseguir as pessoas. Não vou imaginar uma coisa dessas. Ela foi feita com boa intenção. Mas de boa intenção o inferno está cheio.


ÉPOCA - O senhor acha que a internação em hospitais psiquiátricos é o melhor tratamento?

Gullar - Ninguém é a favor de manicômio ou de encerrar uma pessoa pelo resto da vida. Isso não existe há muito tempo. Mas hoje as famílias sem recursos não têm onde pôr seus filhos. Eles vão para a rua. São mendigos loucos, mendigos delirantes. Podem agredir alguém. É imprevisível o que pode acontecer. O Ministério da Saúde tem de olhar isso. O hospital-dia é uma boa coisa. Mas para o doente ir para o hospital-dia ele tem que querer ir. Quando entra em surto, é evidente que não vai querer ir para o hospital-dia. Dizer que os doentes serão encarcerados é terrorismo.


ÉPOCA - Qual a sua opinião sobre a visão do movimento de luta antimanicomial?

Gullar - Esse pessoal não diz explicitamente, mas eu sei que para eles não existe doença mental. Por que falam em psiquiatria democrática? Existe urologia democrática? A psiquiatria democrática pressupõe que as pessoas internam seus parentes para cercear a liberdade deles. Segundo essa linha, o cara não é doido. Ele é um dissidente. Isso vem da época das drogas, da época dos Beatles, da época em que as pessoas diziam “tu tá pinel”. O que era isso? A classe média cheirava cocaína e ia parar no Pinel. Não eram doidos. Mas, levada a uma overdose, a pessoa pode entrar num estado de delírio. Esse pessoal acha que a máfia de branco cerceia a liberdade das pessoas. Pessoas que são dissidentes da sociedade burguesa. A psiquiatria democrática considera que a sociedade é que é doente e reprime aqueles que discordam dela.


ÉPOCA - Por que o sr. diz que isso é um marxismo equivocado?

Gullar - A raiz ideológica da psiquiatria democrática é a ideia de que não existe doença. A sociedade é que é culpada porque é burguesa. Quando eu estava exilado em Buenos Aires, nos anos 70, fui conversar com os médicos no hospital onde meu filho Paulo (hoje com 50 anos) havia sido internado depois de um surto. Uma médica veio conversar comigo e disse que o problema não era do meu filho. Era da família e da sociedade. Disse para ela: então me interna.


ÉPOCA - Paulo estava com você no exílio?

Gullar - Nessa época, sim. Um dia ele teve um surto e sumiu. Foi encontrado em estado totalmente delirante e foi internado. A médica chamou a mim e a minha mulher para conversar. Eu disse: coração adoece, rim adoece sem que a sociedade seja culpada de nada. O cérebro é o único órgão que não adoece por si? A sra. não acha que uma pessoa pode nascer com uma deficiência fisiológica no cérebro? O que está por trás de tudo isso é uma visão equivocada.


ÉPOCA - Quando seus filhos receberam o diagnóstico de esquizofrenia?

Gullar - Os dois começaram a falar disparates e a se comportar de maneira anormal. Isso se manifestou quando tinham 15 ou 16 anos. A doença foi precipitada pela droga. Era um período que cheirar cocaína, fumar maconha e consumir LSD estavam na moda. Surgiram anormalidades, mas eu não fiz nada. Atribuía o comportamento deles às drogas.

Um comentário:

  1. Estou de pelo acordo com o sr. Ferrreira pai de dois filhos, a situação e bem complicado , qdo se tem na familia pessoa com este tipo de doença, e não ter a quem recorrer, só quem tem ou teve filhos assim pode entender. e um desespero todos os dias, sem saber como ser a o dia de manhhã, sem ajuda, sem internação, sem apoio da saude, oq ue fazer com filhos doente. acredito que sofrimento em dobro. pois sofre pai e sofre filho tbm. estou tendo este tipo de problema e não sr a quem mais recorrer, pois os filhos não aceitam a ser internado de livre e espontanea vontade e quem passa a sofrer e a familia a toda, a quem recorrer... A DEUS....orar e pedir a DEUS que os nossos filhos não mate ninguem, pois se matar ai sim.... consegue internar, rapidamente depois que matar, ou da familia, ou ele mesmo, o outra pessoa qualquer. A saude e precaria e o governo e omisso aos pobres, o rico interna em hospitais particulares o pobre, fica por sorte de DEUS e por oração familiar, e pedi a DEUS força para todos os dias, pois não sabe como sera o dia de amanhã. mhdb - 11/11/09 - sumare

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