sábado, 5 de junho de 2010

O HOMEM NÃO ACEITA MAIS FICAR TRISTE


"O homem não aceita mais ficar triste" -


Entrevista de Miguel Chalub para a "Istoé" Publicado por Dagoberto Silva em 27 maio 2010 às 3:14 em Saúde

Compartilho com os amigos do portal essa entrevista do professor e médico psiquiatra Miguel Chalub, dada a Adriana Prado na "ISTOÉ" número 2115 dessa semana.

O médico aponta o uso desnecessário de remédios para curar simples tristezas. Aponta também lobby da indústria farmacêutica como má influência e médicos mal informados ou despreparados como cúmplices. No fundo parece que a busca humana pela felicidade (prazer negativo ou positivo) encontra uma nova "solução". E quer solução mais moderna que uma pílula? Só se fosse por download mesmo.


“Uma das maiores autoridades brasileiras em depressão, o médico diz que, hoje, qualquer tristeza é tratada como doença psiquiátrica. E que prefere-se recorrer aos remédios a encarar o sofrimento.


A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que a depressão será a doença mais comum do mundo em 2030 – atualmente, 121 milhões de pessoas sofrem do problema. Para o psiquiatra mineiro Miguel Chalub, 70 anos, há um certo exagero
nessas contas. Ele defende que tanto os pacientes quanto os médicos estão
confundindo tristeza com depressão. “Não se pode mais ficar triste, entediado,
porque isso é imediatamente transformado em depressão”, disse em entrevista à
ISTOÉ.



Professor das universidades Federal (UFRJ) e Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), ele afirma que os psiquiatras são os que menos receitam antidepressivos, porque estão mais preparados para reconhecer as diferenças entre a “tristeza normal e a patológica”. Mas o despreparo dos demais especialistas não seria o único motivo do que o médico chama de “medicalização da tristeza”. Muitos profissionais se deixam levar pelo lobby da indústria farmacêutica. “Os laboratórios pagam passagens, almoços, dão brindes. Você, sem perceber, começa a fazer esse jogo.”



ISTOÉ- Por que tantas previsões alarmantes sobre o aumento da depressão no mundo?



Miguel Chalub - Porque estão sendo computadas situações humanas de luto, de tristeza, de aborrecimento, de tédio. Não se pode mais ficar
entediado, aborrecido, chateado, porque isso é imediatamente transformado em
depressão. É a medicalização de uma condição humana, a tristeza. É transformar
um sentimento normal, que todos nós devemos ter, dependendo das situações, numa
entidade patológica.



ISTOÉ- Por que isso aconteceu?



Miguel Chalub - A palavra depressão passou a ter dois sentidos. Tradicionalmente, designava um estado mental específico, quando a pessoa estava triste, mas com uma tristeza
profunda, vivida no corpo. A própria postura mostrava isso. Ela não ficava
ereta, como se tivesse um peso sobre as costas. E havia também os sintomas
físicos. O aparelho digestivo não funcionava bem, a pele ficava mais espessa.
Mas, nos últimos anos, a palavra depressão começou a ser usada para designar um
estado humano normal, o da tristeza. Há situações em que, se não ficarmos
tristes, é um problema – como quando se perde um ente querido. Mas o
homem não aceita mais sentir coisas que são humanas, como a tristeza.



ISTOÉ- A que se deve essa mudança?



Miguel Chalub - Primeiro, a uma busca pela felicidade. Qualquer coisa que possa atrapalhá-la tem que ser chamada de doença, porque, aí, justifica: “Eu não sou feliz porque estou
doente, não porque fiz opções erradas.” Dou uma desculpa a mim mesmo. Segundo,
à tendência de achar que o remédio vai corrigir qualquer distorção humana. É a
busca pela pílula da felicidade. Eu não preciso mais ser infeliz.



ISTOÉ - O que diferencia a tristeza normal da patológica?



Miguel Chalub - A intensidade. A tristeza patológica é muito mais intensa. A normal é um estado de espírito. Além disso, a patológica é longa.



ISTOÉ- Quanto tempo é normal ficar triste após a morte de um ente querido, por exemplo?



Miguel Chalub - Não dá para estabelecer um tempo. O importante é que a tristeza vai diminuindo. Se for assim, é normal. A pessoa tem que ir retomando sua
vida. Os próprios mecanismos sociais ajudam nisso. Por que tem missa de sétimo
dia? Para ajudar a pessoa a ir se desonerando daquilo.



ISTOÉ - Ainda há preconceito com quem tem depressão?



Miguel Chalub - Não. É o contrário. A vulgarização da depressão diminuiu o preconceito, mas criou outro
problema, que é essa doença inexistente. Antes, a pessoa com depressão era
vista como fraca. Hoje, as pessoas dizem que estão deprimidas com a maior
naturalidade. Não se fica mais triste. Se brigar com o marido, se sair do
emprego, qualquer motivo é válido para se dizer deprimido. Pode até ser que
alguém fique realmente com depressão, mas, em geral, fica-se triste. O
sofrimento não significa depressão. E não justifica o uso de medicamentos.




ISTOÉ - Os médicos não deveriam entender este processo?



Miguel Chalub - Os médicos não estão isentos da ideologia vigente. O que acontece é: você vem ao meu
consultório. Eu acho que você não está deprimido, que está só passando por uma
situação difícil. Então, proponho que você faça um acompanhamento psicoterápico.
Você não fica satisfeito e procura outro médico, que receita um antidepressivo.
Ele é o moderno, eu sou o bobão. Para não ser o bobão, eu receito um
antidepressivo logo. É uma coisa inconsciente.



ISTOÉ - Inconsciente?



Miguel Chalub - Os médicos querem corresponder à demanda. Senão, o paciente sairá achando que não foi bem atendido. Receitando um antidepressivo, eles correspondem à demanda,
porque a pessoa quer ser enquadrada como deprimida. Mas há a questão dos
laboratórios. Eles bombardeiam os médicos.



ISTOÉ - A ponto de influenciar o comportamento deles?



Miguel Chalub - Se for um médico com boa formação em psiquiatria, mesmo que não seja psiquiatra, ele saberá rejeitar isso, mas outros não conseguem. Eles se baseiam nos
folhetos do laboratório. Não é por má-fé. Os laboratórios proporcionam muitas
coisas. Pagam passagens, almoços, dão brindes. O médico, sem perceber, começa a
fazer o jogo. Porque me pagaram uma passagem aérea ou me deram um laptop, acabo
receitando o que eles estão querendo.



ISTOÉ - O médico se vende?



Miguel Chalub - Sim. Por isso é que há uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária proibindo os laboratórios de dar brindes aos médicos. Nenhum laboratório
suborna médico, não que eu saiba, nem vai chegar aqui e dizer: “Se você
receitar meu remédio, vou lhe dar uma mensalidade.” Mas eles fazem esse tipo de
coisa, que é subliminar. O médico acaba tão envolvido quanto se estivesse
recebendo um suborno realmente.



ISTOÉ - Esse lobby é capaz de fazer um médico receitar certo remédio?



Miguel Chalub - Aí é a demanda e a lei do menor esforço. Se o paciente chegar se queixando de insônia, por exemplo, o que o médico deveria fazer era ensiná-lo como dormir.
Ou seja, aconselhar a tomar um banho morno, um copo de leite morno, por exemplo.
Mas é mais fácil, tanto para o paciente quanto para o médico, receitar um
remédio para dormir.



ISTOÉ - Os demais especialistas também receitam remédios psiquiátricos, não?



Miguel Chalub - Quem mais receita antidepressivos não são os psiquiatras, são os demais especialistas. Os psiquiatras têm uma formação para perceber que primeiro é
preciso ajudar a pessoa a entender o que está se passando com ela e depois, se
for uma depressão mesmo, medicar. Agora, os outros, não querem ouvir. O
paciente diz: “Estou triste.” O médico responde: “Pois não”, e receita o
remédio. Brinco dizendo o seguinte: se você for a um clínico, relate só o
problema clínico. Dor aqui, dor ali. Não fale que está chateado, senão vai sair
com um antidepressivo. É algo que precisamos denunciar.



ISTOÉ - Os psiquiatras deveriam ser os únicos autorizados a receitar esse tipo de medicamento?



Miguel Chalub - Não acho que seja motivo para isso. Os outros especialistas têm capacidade de receitar, desde que não entrem nessa falácia, nesse engodo.



ISTOÉ - Mas os demais especialistas estão capacitados para receitar essas drogas?



Miguel Chalub - Em geral, não.



ISTOÉ - É comum o paciente chegar ao consultório com um “diagnóstico” pronto?



Miguel Chalub - É muito comum. Uma vez chegou um paciente aqui que se apresentou assim: “João da Silva, bipolar.” Isso é uma apresentação que se faça? Quase respondi: “Miguel
Chalub, unipolar.” É uma distorção muito séria.




ISTOÉ - O acesso à informação, nesse sentido, tem um lado ruim?



Miguel Chalub - A internet é uma faca de dois gumes. É bom que a pessoa se informe. A época em que o médico era o senhor absoluto acabou. Mas a informação via Google ainda é
precária. Muitas vezes, a depressão, por exemplo, é ansiedade. Mas as pessoas
não querem conviver com a ansiedade, que é uma coisa desagradável, mas que
também faz parte da nossa humanidade. Tenho uma paciente que disse: “Ando com
um ansiolítico na bolsa. Saí de casa, me aborreci, coloco ele para dentro.”
Então é isso? Se alguém me fala algo desagradável, eu tomo um ansiolítico? Isso
é uma verdadeira amortização das coisas.



ISTOÉ - O que causa a depressão?



Miguel Chalub - Esse é um dos grandes mistérios da medicina. A gente não sabe por que as pessoas ficam deprimidas. O mecanismo é conhecido, está ligado a uma substância chamada
serotonina, mas o que o desencadeia, não sabemos. Há teorias, ligadas à
infância, a perdas muito precoces, verdadeiras ou até imaginárias – como a
criança que fica aterrorizada achando que vai perder os pais. As raízes da
depressão estão na infância. Os acontecimentos atuais não levam à depressão
verdadeira, só muito raramente. Justamente o contrário do que se imagina. Mas
mexer na infância é muito doloroso. Não tem remédio para isso. Precisa de
terapia, de análise, mas as pessoas não querem fazer, não querem mexer nas
feridas. Então é melhor colocar um esparadrapo, para não ficar doendo, e
pronto. É a solução mais fácil.



ISTOÉ - O antidepressivo é sempre necessário contra a depressão?



Miguel Chalub - Quando é depressão mesmo, tem que ter remédio.



ISTOÉ - Há quem diga que hoje a moda é ter um psiquiatra, não um analista. O que sr. acha disso?



Miguel Chalub - As pessoas estão desamparadas. Desamparo é uma condição humana, mas temos que enfrentá-lo, assim como o fracasso, a solidão, o isolamento. Não buscar
psiquiatras e remédios. Em algum momento, isso pode ficar tão sério, tão agudo,
que a pessoa pode precisar de uma ajuda, mas para que a ensinem a
enfrentar a situação. Ensina-me a viver, como no filme. Não é me dar pílulas,
para eu ficar amortecido.




ISTOÉ - O que é felicidade para o sr.?



Miguel Chalub - A OMS tem uma definição de saúde muito curiosa: a saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social. Essa é a definição de felicidade, não de
saúde. Felicidade, para mim, é estar bem consigo mesmo e com o outro. Estar bem
consigo mesmo é também aceitar limitações, sofrimento, incompetências,
fracassos. Ou seja, felicidade também é ficar triste de vez em quando.”

Um comentário:

  1. Dr Flávio,

    Muito interessante a inciativa do seu blog e essa entrevista condiz muito com a realidade que vivenciamos, sou psicóloga e trabalho no contexto escolar, onde a medicalização e banalização da informçaõ faz com que qualquer funcionário se sinta no direito de diagnosticar um aluno.

    Parabéns pela iniciativa.

    Att Maria Angélica Duque

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